Qual a especialidade da primeira vez? De tudo, se alguma vez deve ter algo de especial, pensar-se ia que seria a última. Mas a primeira? Depois da primeira há a segunda, a terceira, a quarta, a quinta vez. Depois da primeira há a repetição, e com a repetição há o decréscimo do valor, da importância, da especialidade. A primeira vez abre um ciclo, abre um leque, abre conseqüências, abre uma nova perspectiva de tudo que é novo, e tudo que é velho e tudo que já se foi e tudo que virá. À última vez, nada. O que se segue ao último beijo?, o que se segue ao último olhar?, o que se segue à última hora?, o que se segue ao último soco?, o que se segue à última vez? E nossa cultura é a importância da primeira vez. O primeiro caminhar, a primeira palavra, o primeiro beijo, o primeiro cigarro, a primeira transa. E o último passo?, o último grito?, o último lábio?, a última salvação?, o derradeiro prazer?, o derradeiro amor?, a derradeira esperança? Depois há o espasmo. O choque dos olhos abertos e das bocas escancaradas sem palavras. O absurdo das mãos a centímetros e a infelicidade da última gota presa na torneira. O desespero consciente dos seis segundos de vida aos quais a cabeça decaptada jogada no cesto agarra-se na tentativa de fugir. À última vez, a lembrança. A mosca na sopa e o calo no pé, a rouquidão da voz e o cheiro que se foi; as pontas dos dedos grossas de esforço e o violão quebrado na prateleira, a dureza do sorriso da graça que já foi graça, mas que agora é retrato. À última vez, os retratos. Não, eu não quero o esplendor e a plenitude da primeira vez. Não quero os sinos, nem os badalos, nem os anjos, nem os astros, nem o brilho, nem a doçura, nem a beleza. Se puder guardá-los, quero-os todos para minha última vez, para meu último adeus, para meu último sorriso. Se puder guardá-los, quero mandá-los embora quando o sol tiver já ido e quando a noite for já minha, quando os olhos estiverem já fechados e meus pulsos acelerados, quando as pálpebras disserem boa noite e o corpo disser bom dia, quando as respirações ficarem profundas e a minha descompassada. Quando a noite for minha. Que depois dessa noite, mais nada.
"Sentir é pensar sem ideias, e por isso sentir é compreender, visto que o universo não tem ideias." F. Pessoa
13 de setembro de 2007
Sobre nada
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a primeira vez é especial pelo inédito, creio. não pela ''decadência'' posterior, até porquê, nem sempre ela se verifica.
ResponderExcluirjá a última...