13 de setembro de 2020

Quando éramos pequeninas, eu e minha irmã, tínhamos duas referências para alcançar em altura: uma era o freezer de casa, que naquela época era separado da geladeira e menor que ela, e a outra era Vó Deza. Fomos crescendo, crescendo... passamos o freezer... passamos Vó... E então muito tempo depois percebi que Vó era muito mais alta que o freezer, era aliás muito mais alta que o prédio. Quando eu me curvava para abraçá-la, na verdade era como se me esticasse! Vó tinha um jeito muito sincero de existir, muito calmo, muito inteiro. Transbordava doçura, além daquele jeito muito engraçado que ela tinha de rir de si mesma quando se confundia com algo. Era demais! O tempo continuou a fazer o que faz, e o freezer se tornou apenas o freezer, doce memória, e Vó continuou a ser referência, doce presença.

6 de agosto de 2020

Quando passou a mão sobre a capa do livro, foi muito mais a distração provocada que a condição alongada dos dedos que me chamou a atenção. Eu olhava a capa concentrada e aquela invasão de privacidade imprevista se transformou num súbito e muito áspero arroubo de indignação no meio da garganta. Ao subir os olhos para protestar, você, já de perfil, partia rumo a outra prateleira, distraída em si mesma. Eu sequer havia estado ali, embora ainda estivesse. No pé da cabeça, visível abaixo da orelha esquerda, alguns pelos faziam o caminho contrário à gravidade e subiam pela nuca, misturando-se, escondendo-se, tornando-se cabelo. Que mania irritante de arrastar os dedos pelos livros, pelas lombadas, mexer nas folhas. Deveria ser impossível em um museu. Mas, à medida que passeava, tocava uma ou outra lembrança, uma ou outra personagem antiga, um ou outro debate, desapontamento, descoberta, e foi, de paixão em paixão, mexendo nas minhas coisas passadas.

Tinha o mesmo comportamento insistente quando atenta. Quase sempre silenciosa. Ao sair com um livro a tiracolo pelas portas de vidro, procurando lugares vazios nas mesas do sebo, havia apenas a cadeira à minha frente, uma mesa escondidinha atrás da pilastra distante do caixa e, embora eu insistisse muito à santa que me deixasse ler sozinha e me tivesse apressado em ocupar aquela vaga com a mochila, ela pediu assento. Assentou-se. Me entregou a mochila sem muita cerimônia. Lia concentrada, não havia falado mais nada, e arrastava a ponta dos dedos compridos pelas bordas das folhas, mexia na margem como se as contasse, como se quisesse movimentar aquelas animações infantis desenhadas no cantinho. Abria a orelha do livro, fechava, segurava-o de quinze formas diferentes em um mesmo minuto. Se lia, não sei. Eu não lia. Achei de comentar sobre o poeta que ela escolheu, porque me incomodava muito o movimento dos seus dedos e eu queria perturbar alguma coisa naquela ordem. Nunca tinha ouvido falar do poeta. Sorriu brevemente, embora não quisesse, e não respondeu. Dentro em pouco abriu a orelha do livro de novo, o poeta era uma mulher. Me olhou quando pedi uma cerveja ao garçon, e pediu uma também. Justificou-se que estava de bicicleta e apontou com a cabeça a magrela em um poste do outro lado da rua. Estou a pé.

18 de junho de 2020

Há dias que o telefone chia. Quando Maria liga, há uma perturbação em entendê-la, uma distração sem conteúdo, o chiado do telefone. Entre incansáveis frases, infinitas elocubrações, sempre uma novidade, me distraio no barulho do chiado. Além disso, ela sempre estende muito as conversas. A distração natural se apóia no problema do meu telefone, e o problema do meu telefone se apóia nesta distração natural do meu jeito... Investigo, sem muito foco, por que ela inventa ter tanto assunto se não tem.