3 de fevereiro de 2022

Como no início jogava muito e com vontade, pareceu a ele que continuaria a rolar os dados. E também tanta vocação tinha para a coisa que ele não pôde se preparar para que ela deixasse o tabuleiro. Ao sair, imaginou que voltaria em breve e assim, como não pudesse jogar os dados por ela, estabeleceu que a cada rodada ela andaria uma casa, o mínimo. Desse modo, alternava rodadas com a expectativa de seu retorno. Acontece que ele, jogando os dados – e com tanta imperícia –, caía nas tarefas mais ingratas e assim calhava de estar sempre atrás. Aquecia os dados nas mãos, cantava macumbas, fazia figas, jogava-os contra a parede para dar à sorte chance de demonstrar sua presença. Mas estava sempre atrás dela, que andava uma casa por vez, sem realmente andar. Comentava no início entre risos que não era possível!, era muita sorte na tranquilidade, muito talento estar na frente sem sequer se esforçar. Depois ficou calado durante um tempo, lhe magoava o moral aquela situação. Mais um pouco e tornou-se sarcástico, azedo. (Mas ela não tinha voltado ainda para perceber.) Depois apaziguou e manteve-se resoluto, determinado. Jogava o dado com fé. As horas passavam, o retorno não acontecia e por sorte o tabuleiro era imenso, daqueles que davam voltas e voltas até o quadrado final. Caía nas casas mais improváveis. Precisou conseguir o telefone de uma amiga; conseguiu. Precisou desenhar um plano infalível; desenhou. Precisou contar um segredo; contou. Precisou comprar flores no domingo às 21h; comprou. Precisou fazer amarração para o amor ou voltar cinco casas; voltou cinco casas, amarração para o amor não fazia de jeito nenhum – não era exatamente que não acreditasse na coisa: recusava-se a dar brecha a que o amor não fosse autêntico. Não queria ganhar o jogo a qualquer preço, queria ganhar o jogo no dado. As horas foram passando. Parecia-lhe que voltaria na hora mais inesperada – e mais certa, o acaso tem disso –, e quem sabe teria passado o tempo a pesquisar estratégias na internet sobre como vencer o jogo, como dobrar o tabuleiro, como viciar o dado, como distrair o oponente. Nada disso era realmente necessário, ela ainda estava na frente. A cada volta, caminhava uma casa e não estava presente sequer para mover o peão. Quando caiu na casa do telefone, já tinha. Quando caiu na casa do plano infalível, consensuou-se que já havia feito. Quando caiu na casa das flores, ele considerou realizado, por aquela situação da outra vez. Quando caiu na casa da amarração, ele fez por ela. Quando caiu na casa do segredo, não estava lá pra contar. De um em um, chegou ao fim do tabuleiro e ganhou, e foi assim que o jogo terminou. Mais desolado que indignado, ele respirou fundo e se levantou, com o peito erguido, passou por cima do tabuleiro e saiu sem arrumar nada. Meses depois, voltou para fechar a porta. Meses mais tarde, como o tabuleiro continuava no meio do cômodo e havia para o quarto outras funcionalidades que estavam sendo adiadas, abriu a porta. Encontrou as coisas como haviam ficado. Tudo tinha um cheiro familiar, de festa. Percebeu que tinha deixado uma latinha de cerveja pela metade e, pela aparência do cinzeiro, deixou também um cigarro aceso que se apagou por si próprio. Com a porta fechada, o cheiro apurou e ao abrir a porta a memória veio com tudo na cara. Tirou os lixos e fechou a porta de novo. Passou um ano e os planos para o quarto precisavam ser resolvidos. Passou um tempo decidindo-os, para poder ter clareza e fazer tudo com mais eficácia ao reabilitar o aposento, mas nessa preparação esqueceu-se de se preparar para o tabuleiro. Decidido, foi até lá e abriu a porta. O quarto, arrumadinho, tinha o tabuleiro num canto como se os jogadores tivessem apenas saído brevemente para usar o banheiro – e ele se perguntou se não tinha sido isso mesmo. Olhou durante um tempo, sem encontrar o sentimento. Agachou-se, olhou para os peões, as cartas, as tarefas ticadas dos bloquinhos. Deu um muxoxo entre o riso e o deboche. Pegou os dados na mão. Palma contra palma, esfregou durante um tempo enquanto olhava a cena. Então pegou a caixa ao lado, colocou os dados no lugar, juntou as cartas, reembaralhou e guardou, reuniu de uma mãozada só o peões e colocou cada um em um buraco diferente, de lados opostos, passou uma mão pelo tabuleiro como se tirasse o pó, dobrou e encaixou. O bloquinho ele pegou e deu uma olhada, sem muita emoção. Ficou olhando; arrancou as duas folhas usadas, colocou o resto do bloco no lugar dele. Então levantou a estrutura plástica interna da caixa que organizava as partes do jogo, colocou as duas folhas no fundo, repôs a parte plástica e fechou o jogo. Não fazia mais a menor ideia do que faria com o quarto, mas deixou a porta aberta.