30 de janeiro de 2022

Nada se passa. Embora sejam duas da manhã e o sono lhe tenha escapado com frequência nos últimos dias, nada se passa. Não tem pesadelos, nem preocupações. Não lhe vêm más memórias, nem excesso de planos. Sente uma certa azia, mas lhe parece que o que a mantém acordada altas horas é a luz da janela dos vizinhos. Dorme e, ao acordar para qualquer mijada noturna, agarra-se numa luz. Existe uma força de atração em imaginar o que eles fazem, o que faria se fosse eles e o que faria com eles. Por vezes enquanto mija escuta certos barulhos que lhe parecem sussurros e muito frequentemente gemidos, mas ao segurar o xixi para escutar, emudecem. Às vezes ainda o acendedor do fogão ressoa em algum apartamento, e lá vai ela variar a pensar quem cozinharia a essa hora, por que e o que. Imagina a cena da cozinha. Resgata alguém do passado remoto e coloca na cozinha e finaliza aquela conversa de anos atrás em que faltou dizer. Ou o passeante noturno que leva o cachorro para passear às três da manhã – o pobre cachorro mal se aguenta em pé, a cada minuto quatro passos, para pra cheirar a planta e lá está há tanto tempo que acho que dormiu. Que imagina o passeante a olhar a lua, parado, como se esperasse o cachorro? O cheiro da dama-da-noite que exala de repente quando quase ninguém está ali pra sentir? Está ela, apoiada na janela, a sonhar na pele dos outros.

24 de janeiro de 2022

Julio caminha pela calçada, muito por hábito, mas em si parece que caminha no meio da rua, e isso lhe excita como se corresse perigo. Corre, mas não no meio da rua. Acende um cigarro, reflete ideias abstratas que são mais sensações. O hábito do cigarro não é mais o mesmo parceiro. Existe alguma memória antiga que se agarrou ao cigarro, um jeito de ser, a expectativa de um jeito de ser. Fuma como quem evita rememorar, mas rememora. Coça a barba com as unhas, escuta o barulho dentro da cabeça. Coçar é também um pouco sua forma de pensar; como se as ideias não corressem apenas quimicamente pelo cérebro, mas sobre os dedos, sob a pele. A garganta arranha na cura da semana passada, quando esteve irritada, como ele. Não devia ser somatização, porque ele ainda está irritado, ela não. O cigarro é como uma desculpa para a solidão, uma poesia para a solidão. Como se, na fumaça, se envolvesse algum mistério da vida que justificaria tamanha confusão. Não justifica. Desta vez, em diferença de outras, não há amantes errados, amigos distraídos, choques de personalidade, esquecimentos inconvenientes. Há Julio, que caminha na calçada como se caminhasse no meio da rua. Em algum lugar do seu metro e oitenta existe um grande buraco. Não tem bem certeza se vazio ou não, mas reconhece o buraco. Ali, onde ao menos ele está dentro, parece existir um certo ar suspenso, uma certa expectativa, uma certa fuligem, que sabe, que se deposita sem efetivamente se depositar, parece mesmo estar suspensa, porque lhe toca a pele e porque lhe pesa o ar. Não é bem que lhe pareça certo estar ali, mas está ali. Não é bem que lhe pareça desconhecida, mas também. Toma-lhe bem um buzinaço nos cornos agora, não tem certeza de que era pra si, mas o carro passou zunindo e pareceu-lhe que qualquer coisa foi dita pelas janelas. Olhou ao redor, e embora não tenha visto ninguém, no meio do movimento perdera um pouco a concentração. Essa fuligem suspensa, o que será. Respira fundo, como se tivesse os sentidos apurados o suficiente para lhe sentir pelas narinas o que a possa justificar, como se sondasse sua intimidade profunda, seu mistério, o fundo sensível do que ela significa. Mas não sentiu cheiro nenhum, a não ser do cigarro, nem sensibilidade nenhuma, a não ser talvez um excesso de fumaça represada. Soltou a baforada ou um certo ar de resignação. Fechou os olhos como que para concentrar-se naquela sensação subterrânea de alguma ideia brilhante que lhe aflorava, mas apenas simbolicamente, pois atravessava a rua e não podia fechar os olhos. Também parado fechava pouco os olhos assim de forma literal porque tinha muitos conhecidos e podia ser que lhe encontrassem desse jeito meio pela metade e lhe era muito difícil responder com a metade socialmente conveniente – entre a auto-sabotagem e a busca de si, acabava começando conversas sinceras demais depois de um simples tudo bem. Coçou a barba no sentido do pomo de adão ao queixo, pensava ou sentia. No meio daquela poeirada toda suspensa, que lhe arrodeava o caminho e parecia deixar rastros do seu trajeto, discernia aqui e ali uma coisa antiga, como um pedaço de papel queimado quase todo, só deixando meia palavra e o resto da sugestão do que poderia ser, do que já foi. Preferia a palavra inteira, assim só meia poderia ser tanta coisa que era como se fosse todas elas. Sentiu qualquer coisa no pâncreas, ou no fígado, ou no estômago, não tinha bem certeza, não conhecia assim as vísceras. Mas a dor era sua, e vinha de dentro. Essa incerteza do fígado, do pâncreas, do estômago, da palavra, da fuligem, do buraco cheio ou vazio, muita coisa, em que ordem deveria começar a se preocupar não sabia. Mas esta memória que lhe agarrava as ideias, o cheiro do cigarro, a textura da poeira, o calor da buzina e os gritos da janela parecia, e era, conhecida. Não parecia tão estrangeira assim, como se já tivesse se insinuado antes, mas onde exatamente e quando e com quem ou sem ninguém. Sem ninguém. A coisa se insinuava por si. Sem ninguém mas através de alguém. Enquanto caminhava e respeitava as regras de trânsito, investigava sem investigar o buraco em que se encontrava. Este vazio sem forma, mas com conteúdo. Como um buraco negro, invisível e poderoso, atraente, magnânimo. E lá estava Julio, no meio da rua.