9 de dezembro de 2014

Diria Manuel*, se o tivesse dito
Vejo que não podes entender o que sinto
Por isso lhe digo o que vejo
E ao veres o que olho
Podes entender meu desejo.



* Manuel Bandeira

3 de dezembro de 2014

O amor me aconselha as maiores loucuras que sinto. Aconselha-me a visão mais nítida por cima da crista magnífica da onda da felicidade. Ousa-me a usar-me feliz, inteira, aventureira e louca, boba, envolvida em envolver-se ao redor da lua brilhante e solta, em meio aos teus versos ocasionais, às ocasiões reais, as lombadas mais gentis que a vida poderia se deixar dar. Sempre em majestosa forma, alterosa hora a de te ter em paz.

10 de novembro de 2014

Suspense nas águas do mar. Bóia subaquática a alga discreta; não flutua, mas bóia. Aguarda a indecisão do oceano; fecha os olhos a dominar a ausência de luz. Espera. Ofusca a expectativa necessária, será que algo virá? Vem a onda, como as outras, a questionar o espaço em si e a essência do movimento: de que difere a onda da ondulação do mar? Passa um saco plástico. Ou será uma água viva? Passa. À espera, um ponto de luz clareia: alguma coisa ao fundo repercute o mistério do sol - deve estar no raso. O raso chega. A areia não decide com a água, não decide com a pedra, não decide com concha, não decide com a caravela quem vai e quem fica. Por fim, a caravela envolvida na alga muda o propósito da alga.

23 de setembro de 2014

Na verdade, enquanto a água cai, o ralo se delicia ao cheiro da pele esquecida. O balanço dos dias encharca de cidade o corpo inevitável - só há esse. A ir ao mercado, a caminhar, a fazer deveres, a olhar a noite, a aprender a lua, a almoçar... O almoço executivo faz que valoriza a rotina vulgar - o nome exagera a pompa. O garçon agrada por haver decorado o cliente, o cliente se agrada com o garçon costumeiro - parece rotina de gente fina. No banho o ralo exala saudade de um suor mais apurado, uma dúvida mais cruel. Caem cabelos de já terem sido usados, não de estarem velhos. Funciona assim sempre. Este texto fala mais que a lembrança que o ralo sente.

26 de agosto de 2014

O meu mistério, hoje, não é mistério, mas ansiedade. A minha introspecção é vazio, não é dúvida. A minha dúvida é mistério universal. A filosofia dos meus dias domina o silêncio das minhas palavras. Digo, amo, faço, e me enrolo. Enredo-me em um algo invisível e incansável, presente nas minhas desatenções, evidente como a espiã da esquina, sorrateiro bandido amalucado. Sugerem-se ideias sem mãe, medos nas inconstâncias, alternâncias na estabilidade. Estabelece-se a transição. O vento confunde a onda, que quando vai olha pra trás; não vê nada, já que o mar é ela mesma e o céu é a imensidão. Não sabe entender que se busca, quer amarrar-se na linha do horizonte.
Não vislumbra o entendimento de que a água é turva, não está suja.

2 de julho de 2014

Põe-se em cheque, vulgariza-se, questiona o pensamento e ridiculariza a própria intenção. Marcos não se deixa quieto. Vê o tempo como um menino que aprende a caminhar, e na longa espera de seus passos inventa mil e uma razões a mil e um problemas novos. Pensa. Pensa. Pensa. Pensa. De saber-se ser humano acha natural tanto pensar, e acostuma-se no vício. Ignora seus efeitos, suas consequências, ignora a própria mudança de comportamento diante do que ali ainda não está: imagina o menino que caminha cair e exaltado pelo susto fictício acaba fazendo-o trupicar. Nunca espera, nunca silencia, nunca aguarda o que há de estar, mas inseguro fantasia sem se deixar respirar.

26 de junho de 2014

escrevia, continuamente maria escrevia aquilo que as mãos sabiam que tinha a dizer. E o que dizia era assim:

Maria muito reflete invigilante, sobre nada. Suas sensações reveladas, entretanto, confundem seus sentidos a ponto de imaginar que tudo pensa e planeja sobre aquilo que vive. Aquilo que vive, entretanto, está vivido, e ela sabe, e sente, e sobre tudo isto se cala solene em sua busca de si e de nada e de nada mais. Espera, ansiosa, o momento em que a espera haverá de transformar-se em uma grande volúpia ardente sem sentido e sem muitas soluções. O que lhe acontece, entretanto, mesmo quando é isso que lhe acontece, é reservado em algum canto que, de tão reservado, escanteia. Tudo isso faz-lhe muito bem. Doutra maneira, maria acabou por encontrar um romance com o qual o descompasso tão grande é que, na perda do passo, perdeu foi o seu. Desta forma, desconfia-se enamorada e não enamorada, desconfia-se aberta e fechada, interessada e não por este forasteiro que com muitas flores floreia seu caminho e tudo o mais quanto deseja dizer-lhe e fazer-lhe, mesmo quando seu pedido resume-se a que ela troque o rolo de papel higiênico. Maria, interessada, interesseira, confunde-se na estampa florida do papel higiênico. Por vezes acha que é romance, por outras, paciência, noutras vezes imagina curiosidade e quando demais se estima, piedade. Armou-se, de desarmada estar, em buscar companhias desafiadoras. Isto porque acredita que apenas o contato há de provar-lhe as suas ansiedades amorosas e as suas ousadias sentimentais. Por isto, lançando-se ao desconhecido, desconfia dever arriscar-se inda mais, a des-saber suas intenções e desejos, a afundar-se em mergulho turbulento de não entender, quando na verdade muito percebe as lacunas dançarinas que se lhe apresentam ao longo dos dias. Não sabe, entretanto, como a elas encantar. Oferece-lhes o costumeiro do romance de uma noite, cerveja, cigarros, sentimentalidades exageradas em frases impactantes, contudo permanecem perenes as lacunas, muito embora se possam enamorar entre um sopro e outro em um dia mais ou menos vulnerável. Maria segue, com buscas muitas que não pode enxergar, e perde-se em tentar encontrar-se. Tendo passado tempo demais sozinha, está com medo de descobrir, tendo já descoberto, que precisa de mais. Longa e difícil busca.

16 de junho de 2014

A panela no fogo mexe-se um pouco mais. Um rebuliço a percorre impreciso, um movimento inquestionável embora perceptivelmente invisível. A água sabe, eu sei; a panela é cobaia das nossas intenções trocadas. Eu não quero o que a água quer, tampouco ela tem interesse no que desejo: a mim interessa o efeito das suas transformações, e a ela o acontecer da mudança. Ninguém se fala pois não há necessidade, o contato está selado na simbiose dos desejos.

Este café tem um cheiro de quem está satisfeito.
Deitava em mim. Fazia-me de apoio para obrigar o meu corpo a lhe dar carinho, a lhe querer, a lhe sentir, e assim ia acontecendo enquanto eu cedia ao formato do seu corpo, ao peso da sua intenção, ao cheiro do seu desejo e ao crescer da minha vontade de deixar despreocupados os efeitos. Tudo está sob meu controle. Os cálculos ligeiros das minhas reações são automatismos da minha defesa desavisada de que não estou ameaçada. Ameaço-me eu mesma, de desconhecer o querer, muito pouco entender o querer, e de machucar o outro o meu desconhecimento de mim. Acontece que eles, que elas, têm mais pressa em chegar a mim do que eu tenho, e assim encontram-me nas pontes que construo para minha própria compreensão, as pontes que construo para chegar aonde apenas suspeito que estou, a indicação da minha sensação de onde quero estar. E ao encontrarem-me aprecio sua companhia curiosa, o seu desejo voluntário, a sua sede vulnerável, a ansiedade do seu querer. E estou também, flutuando nas minhas disposições, esticando os meus limites, voluntariando a minha vontade um centímetro a mais a troco das maravilhas do amor. Arregaça-me o bem querer. Invade-me a vontade ardente. Enquanto não ardo, provoco a mim e, com mais sucesso, a outras que estão, que permanecem, que me puxam para fora. Mas o corpo protege a alma. Ou será a alma quem protege o corpo, a negar-me a mim o desejo, o toque e a confiança no jeito sincero com que as partes de mim se sentem? O que será que está ali no lugar exato do não e do jeito seguro com que paro a caminhada, com que volto para casa, com que fala o meu silêncio? O mundo gira em uma inércia mais veloz do que a minha rapidez. Eu sou lenta e assim gosto, assim entendo o tempo que também se estica a me entender. Tocamo-nos o tempo e eu, nos últimos tempos, com tanta carícia e tanta afeição, com tanto respiro e com tanta disposição a estarmos juntos o quanto a vida seguir. Sigo o tempo que me segue. Segue o tempo em que eu sinto o meu tempo de sentir.

26 de maio de 2014

O tempo passa e tudo o mais fica. O violão sabe mais de mim, maliciosa serpente que carinho com os dedos, que melindrosa dos meus medos aos meus afobos inventa alguns sentimentalismos que durante a canção eu também acredito, às vezes perduram... Toco, toco, eu mesma não quero parar a reentrar no mesmo universo das coisas que ainda se dão, os receios que eu ainda tenho, os limites que eu ainda imponho, as paixões que ainda não conto e as mentiras que não me paro de dizer. Toco, muito, sem os amantes, sem clareza, sem a forma do desejo que, vazio, vadia... Me recomendam canções, me dão outros temas... não quero! Continuarei a paquerar esta existência invisível com quem travo o meu amor musical.

7 de maio de 2014

Com toda a simplicidade, a poesia da ausência te inventa. É o nada acontecer e o tudo sugerir-se nas nossas ideias de realidade que constrói o espaço total que vamos ocupando. Uma frase, um nada, o carinho abstrato de lembrares de mim ergue uma tarde inteira de poesias a tentar desbravar o agrado do seu coração, a tradução das minhas delicadezas, a dança dos carinhos que vou lhe dar, quando?, já dou, de expectativa em expectativa, nunca. O espaço imaterial entre nós já abusa da nossa distância, distrai-se dos nossos carinhos, e não quer mover-se para lugar nenhum.

2 de maio de 2014

A poesia não é suficiente para explicar o nosso desentendimento. É preciso não dar as voltas sentimentais que se dão por dentro, abreviar-lhe as expectativas das minhas buscas, reduzi-las, poupá-las à sua criatividade de sempre encontrar buracos nas minhas frestas. Vamos tirar este som de estórias musicais de outros romances, de buzinas angustiadas a empurrar a preocupação do futuro e da família ao interior da minha barriga faminta, a transformar os meus sonhos em pressas, os meus desejos em infantilidade, a minha seriedade em obrigação. A confundir o presente e os projetos, a fabricar a necessidade de ser outra coisa, a mentir toda a minha insensatez em imaturidade. O tempo que se faz necessário não é requinte, é condição.

1 de maio de 2014

A garfada fatal no tomate cereja denuncia os destinos que inventa à moça. A incompreensão de seus sentimentos o levou a um estágio semi-profissional de matador encomendado; a ausência de dinheiro fizera-o contratar-se a si mesmo. Escrevera cartas em que lhe explicava mais uma vez e de modo compenetrado as intenções do romance que nascera dentro de si, e que, sem a possibilidade de existir, pouco deixava de margem para uma vida saudável. Com os dias, adquiria vícios e leituras dos romances policiais, mudou roupas, esteve a fumar e a única coisa que não mudou foi o gosto pelo álcool. Não fez amigos, ainda que a rotina nos bares proporcionasse ocasionais descontos à vista de planejamentos caros de equipamentos do exterior. Por pouco e por distração da rua, não se tornou um lunático para a vizinhança, que também o havia conhecido em momentos mais punjantes. Deixara o cabelo crescer sem o notar e a contínua mudança dos hábitos e do visual começou a desagradar a opinião alheia. De tantos papéis juntados, planos metricamente demarcados, materiais orçados, escreveu este conto, mais nada.

30 de abril de 2014

O silêncio torna clara a distância entre as intenções. As conversas que se forçam de todo modo na rotina vão relevando a existência de dimensões diferentes, planetas distantes cujas pontes se tornam possíveis nos encontros do espaço-tempo, misterioso, incontrolável, imprevisível... À janela devo montar guarda?, a esperar o fenômeno marcante que me revelará o novo passo possível, a revelar aonde se amarrará a outra ponta da corda? À mesma visão do espaço sideral descoberto e reindescoberto encanta-se o meu mundo inteiro... Como concentrar a atenção em um só fenômeno, estando todas as possibilidades universais à espera da mesma porta espaço-temporal para as mais diversas dimensões... Apenas tempo, o que se põe no espaço inescapável de nós, pode descobrir, desatento, o melhor momento de sair de casa. Portanto deixo-me aqui ficar, a esperar o sopro da flauta a domesticar minha cobra, o encantamento invisível a conduzir minhas cordas, a fagulha rasteira a invadir meu rastilho.

28 de abril de 2014

O tempo alcança patamares inalcançáveis, nada havia planejado para esta fase do caminho. A descrença oca substitui o desejo tácito por quase tudo que se põe à minha frente, eu imagino novos voares, preciso escapar de tudo. Apenas a realidade constrói a realidade. Eu estou a costurar imensidões sem nada, a tinta e o papel seguem a sua fantasia desvairada de me inventar, e, sem mais amarras, acredito em tudo quanto vai parecendo suficientemente lúdico, razoavelmente duradouro, ligeiramente esquecível com suportável facilidade. A ilusão me constrói nos meus espaços vazios, e a cada novidade espaço-me imprevista.

18 de abril de 2014

Sob a tenda rondou algo inconsciente além da moça. Um rebuliço, um susto constante, a suspensão entre os pulmões: a comunidade reunida pairava sobre a confusão de gente. A moça não o olhava porque quando olhava, nada via, o amante desfigurava todo o resto da folia. De cá pra lá, daqui pra lá, toda a gente a todo canto, uma confusão de rostos, meias frases, conhecidos de passagem, que bagunça essa noite nas emoções de Lia! Não olhava, mas tampouco era como se fizesse que não via. Mas é mole, criativa, inventosa a cotovia.
Os suspiros do céu descansam a minha pressa.

9 de abril de 2014

Ao pé da montanha mesmo o sol mais forte é como a luz da geladeira. Interesso-me em contorná-la, curiosa dos arredores; o parceiro sugere outra coisa: quer escalá-la. A moça, conquanto por aí não iria, observa que o desbravar do alto tem a mesma raiz do desbravar dos lados: aquilo que não se conhece se está por conhecer. E pelo alto segue, conhecendo riscos que não era sua ideia conhecer, alcançando visões que não estava pronta para alcançar, fazendo esforços que não era a hora de fazer, escolhendo bifurcações frente às quais ainda não havia imaginado estar e para as quais a escolha do caminho era como a mesma escolha primeira de subir ou margear. E dando a continuidade da subida a mesma sensação de seus primeiros passos, quis parar. Sentada na pedra convidou-o a também refletir aonde já tinham chegado, o que já tinham conhecido e a possibilidade de descer e contornar o monte. Absorvera a experiência, aprendera as decisões, acumulara o conhecimento e com carinho propunha-o seguir por enquanto um novo destino: o conhecimento da montanha, conquanto não fosse assim tão vasto, transformava as primeiras escaladas em uma jornada se não fácil, nostálgica, caso o futuro os levasse a retomá-las.

Mas o moço tem certo o desejo de alcançar os 30 metros de altura; acredita que de lá a moça realmente verá a beleza da pintura. Convida, faz que sim, insiste na decisão; o tino pela aventura, o aproximar-se da lua, o carinho da atenção levam a moça para cima e renova-se a intenção. Mas caminhando mesmo sem pensar, a sensação já lá está: quantos vales, quantas árvores os arredores devem guardar? Quanta paisagem escondida, quanta lufada de vento imprevista, quanta nova possibilidade não se avista na volta que iria dar? Os passos deixam a marca da pesada passada e da escolha a vacilar; ela se inclina, olha o abismo e acha que é hora de retornar. Faz-lhe um novo plano bem marcado, para lhe dar segurança em descer e tentar novos achados, conta das formas mais encantadoras aquilo que ela mesma sonha encontrar, o que já ouviu dizer e que estarão ainda lado a lado para arriscar. Mas ele pestaneja, tem certeza do futuro que lá na frente vai encontrar. Enquanto ela fecha os olhos e revê o pé da montanha, relembra as possibilidades iniciais e as atuais estranha, a moça nota-se e percebe viva a escolha que ainda pode tomar, dá a ele a ponta de uma corda e lentamente desce a encosta, pela qual já desce circular.

17 de março de 2014

À porta! com rapidez
anda o fiscal a jato,
intimidadora avidez
para não homem e sim rato.

Se desconhece o que faz
e o resultado é que já fez,
o caminho não se prepara
ao que virá outra vez.

Controlado o incidente
prevenido o desastre
Ninguém diria que muda
a criatura se debate.

Enquanto o cartão bate o ponto
E o ponto bate o cartão
O furo deixa uma fresta
Direto ao coração.

A rota inatingida vai-se tornando revelada
A ansiedade retraída revela-se entornada
E o espírito enfim deixa
a casa desarmada.

10 de março de 2014

O tempo se cansa de me observar a cavar no muro buracos para contemplar o dia a dia da sua pele leve. Eu investigo pelas brisas da minha consciência os movimentos que você faz descompromissada com o acontecimento. Eu conduzo a atenção a desbravar os seus mistérios que eu mesma inventei. Eu costuro na imaginação os descaminhos da tranquilidade que a chama do desejo me impossibilita ter. Enfim, continua diariamente a criatividade da minha vontade a escrever por todos os meus neurônios, os meus poros, os meus ponteiros, as malemolências da sua rotina nas horas esquecidas de mim, nas desatenções do tempo e nas quebras do trabalho. A cada cafézinho, sua colher me mexe.

6 de março de 2014

Sobe a ladeira o incrível momento dentro de mim. O espaço sideral deixou há muito o seu caminho indescoberto na minha janela, e todas as incríveis descobertas que faço parecem insuficientes diante da interminável provocação daquilo que ainda não se sabe. Os anzóis, postos em todos os lugares, passam por mim risonhos a procurar presas mais desavisadas, menos exigentes dos amores desta vida, enquanto, apesar de tudo e dos outros, estou a procurar outras que não me procuram. Segue a rotina um jeito desajustado de surpreender-me, enquanto me nego a me enquadrar na batida do ponto. Estou, entretanto, em várias noites, como outras pessoas sem rumo, loucos à deriva à espera de um primeiro agrado, um primeiro gesto, um primeiro estado de coisas a perseguir. A resistência empurra a minha própria persistência. Há silêncio em mim, enquanto ainda nada acho das coisas que começam a ser achadas.

16 de fevereiro de 2014

No pensamento tudo desalinha como numa estória, como uma invenção puramente ficcional de por qual curva a vida pode virar. Nesta curva, dada você toda curva, curvei-me sem ver a maior dobradura da minha perna dura por você. Ansiedade me mexe por dentro do meu choque estático. Se para você pareço solta e muito bem versada, por dentro desce a força desconhecida da sua armada, que percalça meu caminho desarrumado por você. Eu caminhada, caminho pela entrada, direto, cercada, onde você me vê. E se a culpa assusta, se a gruta desmuda, eu deixo transparecer. Pode cansar, pode levar, pode deixar para depois crer, neste desejo que deseja  quase que eu desejo por você.

10 de fevereiro de 2014

Entre as brincadeiras que fazemos eu e a liberdade do meu sexo, você vai penetrando por debaixo das garras do meu desejo onde mesmo o comprimento das outras unhas não cutuca. A sobriedade faz com que eu siga por onde a tranquilidade me permite que lhe olhe sem que enrijeça nada em mim além da malemolência com a qual paquero. Oscilo entre saber e não saber porque eu faço isso. Desconheço se ser simples consiste em lhe querer e lhe conquistar ou em driblar o meu desejo até desvanecê-lo. Me engano em saber se sem você estarei mais satisfeita ou menos excitada. A putaria me ensina que posso encontrar novos prazeres que não envolvam a sua pele indesbravada ou a sua boca feroz. O rascunho do prazer me ilude a lhe achar ardente. Mas você é frequentemente esta figura tola que constrói em mim, entretanto, curiosidade e memória, e deixa evidente a fantasia a se ter.

15 de janeiro de 2014

Conversam-se duas vértebras. Começaram a partir da discussão de quem mexeu primeiro. Se mais pra direita, ou pra esquerda, foi que escorregou a inaugural viagem do osso. Uma não tinha dúvidas, a outra nem as procurara. Era um caso óbvio de perspectiva, dizia a de cima, ao afirmar que debaixo não se era possível obter o quadro geral da situação. Para a debaixo, era mais que evidente que a visão superior causava uma impressão fictícia na dimensão dos fatos - e que por fim, por certo, mexera-se ela inclusive tão meticulosamente que à outra sequer seria possível o movimento. Aí a injúria foi tamanha que a de cima, tentando ralar a mão na debaixo, escorregou-se para a esquerda numa dor inesquecível. Esbravejava convencida, sem sombra de curiosidade, que estava tudo errado. Depois de três dias assim, ninguém ainda havia se preocupado com a hérnia, cujos nervos já estavam à flor da pele.

5 de janeiro de 2014

Carmen sem Diego

Submete, em toda carta, as profilaxias devidas aos sentimentos do coração e da alma que a mulher lhe escreve. Foi sua mulher há uma medida de trinta anos, e por sete. Mantiveram algum contato abstrato ao longo do tempo que, depois de retomada a aproximação através destas recentes cartas, nada pareceu estranho nem a um nem a outra. Por isso nas primeiras correspondências ela achou natural não retomar a história dos trinta anos sem ele, mas começou por lhe dizer as atualidades sabendo que ficariam evidentes os acontecimentos relevantes destas décadas através das consequências que tomaram o trabalho de bem se dividirem pelos anos que se seguiram. E sempre recebia em retorno os prognósticos certos uma vez adotadas as medidas recomendadas pela experimentação do amante. Ficou evidente sem muito tempo que ele era um homem didático e havia conservado a paciência, e não se deu para pensar que havia adicionado a ela o tempero desagradável da arrogância, mas apenas que precisava acreditar ter acumulado na vida ensinamentos universais da alma humana e ser íntimo da providência. Por este motivo é que lhe recomendava o alongamento logo depois do acordar, conquanto incomodasse os músculos preguiçosos do sono. Por este motivo também lhe contou que as inconstâncias do final da carreira profissional, quando não se sabe se se percebe o descanso como prêmio ou a aposentadoria como ofensa, são truques do vício humano de imortalidade - e que o descanso é uma bênção.

Conquanto não tivesse gostado de ser chamada de velha, como tomou o recado, resignou-se em lembrar que mesmo trinta anos atrás ele já era muito menos conservado que ela, e que se já estava no ponto em que emitia verdades breves e soberanas, já deveria ser avô. Tendo que com ele não tivera filhos, e que depois do fim do romance optou pela laqueadura e pela putaria, imaginou-se em melhor estado. A verdade era que ele continuava robusto e interessante, muito embora depois de todos aqueles anos a beleza ainda não tivesse encontrado seu endereço, como pôde comprovar na fotografia que ele mandou anexa com um neto em cada perna. Tinha começado a pedalar depois que ficou careca e viciou na sensação do vento na cabeça pelada, motivo pelo qual não usava capacete. Não se tornou atleta pela preguiça da dedicação, mas fazia uma vez ao ano alguma jornada pelas estradas quanto mais íngremes melhores. Aos 75 trocou a mountain bike pela bicicleta elétrica por cansaço de subir as ladeiras para tornar a descê-las. Tinha plena convicção que, nunca tendo chegado mais perto do céu que ele, a ex-mulher não podia se gabar de uma perspectiva de mundo mais esclarecida que a dele. Nunca fora dada aos esportes radicais e muito pouco às saídas noturnas. Ia a casas de espetáculo e a concertos musicais desde sempre e muito mais que aos shows e os happy hours. Relembrou-a privada de ousadias e excessivamente comedida, dada a pouca gente e às conversas de conteúdo, buscando na cabeça as justificativas do mundo e ignorando as verdades da vida em si. Ignorou até muito pouco antes de sua morte que ela se deitara com incontáveis homens, inclusive velhos amigos, e que tivera gozos colossais, e o choque da surpresa foi tão duradouro que não teve tempo de fabricar uma opinião antes de tirar as medidas do terno de madeira. E é por este motivo que descreve nas cartas um rol de sensações, acompanhadas de suas consequências e de seus remédios, dos quais acredita que ela há-se impedido, não sem alguma vaidade.