14 de junho de 2021

Enquanto eu deveria produzir tantos materiais, planos, estratégias, cronogramas, controles, tabelas, pareceres, você caminha pelos meus corredores. Eu não vejo, mas eu sinto. Inclusive em locais e horas inconvenientes em que deveria estar praticando a atenção plena em uma coisa completamente diferente do que nessa sensação que você me dá. Você passeia... textura delicada dos seus dedos, que por dentro inventam lugares novos, ideias improváveis, jeitos muito imprevisíveis de me trazer para onde você quer colocar. Você põe. 

Marcamos um encontro. Enquanto várias ideias precisam ser debatidas, analisadas, decididas, estou viajando em uma situação completamente diferente. Olho sem pressa o seu rosto, com muitos detalhes e pausas absurdas. Lá no fundo, você fala o que viemos discutir; parece, eu escuto. O meu prazer é o seu prazer, não assim desse jeito cafona, mas em testemunhar as suas reviradas de olhos, o desacerto da sua respiração, a denuncia implanejada do seu desejo. Você regula o suspiro, mas o peito sobe mais do que se fosse uma respirada comum. Confissões a contragosto. Fecho os olhos por um tempo que deve ter parecido longo, "e então?", você me resgata, digo que estou considerando tudo o que você me disse, mas respondo com o que pensei enquanto me detinha em imaginar uma outra circunstância... "parece ótimo". Por sorte, seu plano era ótimo mesmo, e posso manter essa ideia. Mas agora, debruçada de lado encostada no seu corpo, volto a olhar os detalhes do seu rosto. Os cabelos, os ossos da clavícula, algumas marcas. E pra baixo vejo em perspectiva o resto do seu corpo. Mas o que me interessa sumariamente é a sua cara. São os seus olhos. Seus trejeitos. As portas de entrada de você.

2 de abril de 2021

Dias horas e longos meses em mim. Não tenho vontade de escrever para não criar um monstro. Quem sabe tenha sido exatamente este leão à porta que me privou da metáfora sincera com que eu contaria de mim encenando filosofar sobre tudo. Apoderar-se de mim, longo esforço... É lógico que a paixão é um perigo ao trajeto; perigo maior são as várias. A vida segue mesmo entre paixão e paixão, e as vagas... Os entreatos descortinam o futuro dos embates, desafiadores duelos na busca do fim, fim este, qual será. Nosso destino comum, invariável, igualzinho, confunde-se na jornada, onde todos nós parecemos tão diferentes, e medrosos - este somos. Ao final, segue-nos restando mistérios sobre o amor e a amizade, embora pareçam sempre tão familiares.


maio 2018

25 de março de 2021

Fecho os olhos para lhe ver. Lá está você, de cima a baixo. Parece até que esperava, que pacientemente aguardava a minha recusa esmorecer enquanto displicentemente percorria as gavetas, armários e bolsinhas em que organizo tudo em mim. Afinal me parece que cheguei aqui ao procurar outra coisa... Que coisa? Aqui estou à sua frente, nessa qualquer mesa de bar, esperando à porta do banheiro desse pé-sujo que era o último aberto e daonde você não sai nem por decreto. À medida que espero sua sede terminar, vou ouvindo várias estórias que não tenho certeza se são a mesma, cheia de pessoas, de jeitos, de vontades e de esquecimentos. Enquanto estou aqui, parece até que você não me esqueceu. Nesse vaivém da sua prosa, me vejo a discordar da sua decisão de ir embora, e trago para a mesa um assunto que acho que não era aquele sobre o qual conversávamos... Não sei. Em todos estes caminhos tenho a impressão de que você falava sobre mim e levei pro pessoal. Enquanto você meio que se defende, meio que dá risada, percebo que não deve ser sobre mim, ou que o feitio dos outros romances está lhe confundindo que amante sou eu e que amante são os outros. Aí, sem mal, sem mim, entendo que você se relaciona com todos nós ao mesmo tempo, mesmo os que já foram, e que somos a mesma coisa fragmentada em pequenas partes que lhe agradam, pequenas partes que lhe surpreendem, pequenas partes que lhe irritam, pequenas partes que lhe contam. Percebo que quando você me beija, na verdade está se beijando, e talvez lhe seja difícil aceitar que não pode beijar a si mesma sozinha; mas é o jeito. Então, quando na lembrança você me olha, será que você me vê? E quando na lembrança te olho, será que olho a mim?