15 de janeiro de 2008

Vem, que quebrou-me a lâmpada (Carta ao tolo)

É lógico que penso em ti. Não poderia esquecer-te nem trocar-te pelas quimeras que me consomem e pelas quais trocaste-me. Não posso permitir-me fugir com as mãos à boca pelas esquinas a gritar teu nome nos olhos, que essa terra nossa é feita de cegos, como nós, e ninguém me viria à porta contar teus segredos. Penso por que motivos não fostes com a donzela de metade de minha idade, não de meia-idade, como eu, como nós. Queria eu ter ido com ela, tão alva era! Penso por que trocaste nossos dias escuros pela água do mar, se ela faz-se também escura nas profundezas. Nunca nos levamos a lugares novos, como quisemos, por termos ânsias demais em nossas barrigas desnutridas. Nunca medimos nossas colheres de açúcar quando sentamos à mesa, um de frente para o outro, contando nossas aventuras e tudo que tivemos de passar e esquecer para estarmos ali. Nunca fomos de nós mesmos, apenas um do outro. Por que é então que vais como se soubesses o caminho ou como se houvesse algum? Não havíamos nós assumido silenciosamente que seríamos sempre nossos por não poder ter o mundo? Mas cospes teu mel no chão contando-me do meu fel, que era na realidade nosso. Era esse nosso amor de sapatilhas e colãs, pitadeiras vermelhas para não tocar com a boca o cigarro, cinta-ligas apertadas para manter nossas pernas rijas. Ora, louco, porque é que creste na alvorada de amanhã, se a de hoje já é corrompida? Nossos olhos meninos acostumados com o borrão escondido no fundo da xícará e quiseste tu vê-lo de perto, como se possuísse tino de cientista! Ora, amor, que loucura. Passo a ferro ainda tuas camisetas, caso queira encontrar-me naquele cais cinza todo nosso, como sempre foi de nós dois por ter sempre sido cinza. Penso que não nos dávamos com cores, e não acho pecado. Tolo fostes em crer que eu pintava ainda as unhas do pé no momento em que deixaste a casa: rancara eu as unhas e pintara a pele anos atrás, muitos anos atrás, todos esses nossos, pois cria ser isso que fosse manter nosso amor de colar, nosso amor colarinho-azul. E foi! Ora, querido, vais dizer-me que andaste às vielas da fábrica com meninas novinhas entre os dedos, brincando com a sorte(delas). Qual o quê! Jogavas dado e dominó aos domingos com outros operários, era essa tua aventura maior, teu achado grande na vida! E ainda que vos desse o dado seis chances, tinhas apensa e apenas uma em casa: eu que te esperava de avental, mãos lavadas e pratos à mesa, porque a vida é mesmo dura para um só. Agora do que é que te alimentas? Estou preocupada, não há mais muito espaço para guardanapos presos em golas de camisa hoje em dia. E se te sujas, quem vos limpa, amor, agora que já não escovo teus dentes com minha escova de cabelo? Ora, querido, estás já na idade de te sentares comigo na varanda, como aos vinte anos, que ainda não eram os dourados, mas haviam de ser...(!) Deixe-te de besteiras, Antônio, e lembra-te que ponho a mesa ao entardecer.

2 comentários:

  1. the masterpiece, my friend.
    Espero lê-lo em páginas envelhecidas de tempo e amarrotadas de lidas.

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  2. "manter nosso amor de colar, nosso amor colarinho-azul."
    lindo, nossa.

    gostei molto.

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