9 de janeiro de 2009

Já eu não sou livre quando converso comigo

Vem Pessoa falar do que ele próprio, de olhos fechados, escreveu. Vem dizer-se livre do que outrora também o fez livre, e vai costurar seu universo a partir do que outrora o universo fez com que costurasse para si. Diz:
“Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento, aquelas frases simples de Caeiro, na referência natural do que resulta do pequeno tamanho de sua aldeia. Dali, diz ele, porque é pequena, pode ver-se mais do mundo do que da cidade; e por isso a aldeia é maior que a cidade…
"Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura."
Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito, limpam-me de toda a metafísica que espontaneamente acrescento à vida. Depois de as ler, chego à minha janela sobre a rua estreita, olho o grande céu e os muitos astros, e sou livre com um esplendor alado cuja vibração me estremece no corpo todo.
“Sou do tamanho do que vejo!”Cada vez que penso esta frase com toda a atenção dos meus nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir consteladamente o universo. “Sou do tamanho do que vejo!” Que grande posse mental vai desde o poço das emoções profundas até às altas estrelas que se reflectem nele e, assim, em certo modo, ali estão.
E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objectiva dos céus todos com uma segurança que me dá vontade de morrer cantando. “Sou do tamanho do que vejo!”(...)Mas recolho-me e abrando-me. “Sou do tamanho do que vejo!” E a frase fica sendo-me a alma inteira, encosto a ela todas as emoções que sinto, e sobre mim, por dentro, como sobre a cidade por fora, cai a paz indecifrável do luar duro que começa largo com o anoitecer.”
Mas enquanto diz, vai deixando sozinha quem dantes agarrou com dois braços e acalentou como ela também acalentava-se sem porquê ou sem sucesso. Porque não me costura o universo que eu seja do tamanho do que vejo. Na realidade, lendo "sou do tamanho do que vejo" faz-me ser do tamanho de uma apresentação de power point, que foi onde colaram tantas vezes as frases mais nuas e rotas de Pessoa e fizeram Caeiro e Reis serem a mesma pessoa, como eu fiz no início disto aqui. Lendo Pessoa ser pequeno, sou grande, pareço imensa, e dou risada daquele com quem geralmente choro junto, calada e seca, sem chorar e sem ser entendida, sem ser nada, porque não sou nem serei. Deixo cair por terra todas as resoluções de otimismo e sei que vou morrer sem ser ninguém, e essa melancolia não será tão bonita quanto a de Tom Jobim ou quanto todas as personalidades do português, e desprezarão e encubrirão minha esquizofrenia como não quiseram enterrar a sua. Não sou nem serei ninguém, e com Pessoa sendo nada e só mais um poeta de boas vontades e desígnios, fazendo os pequenos se sentirem grandes e não os pequenos se sentirem pequenos, que é como deve ser e como somos, sou ninguém sem dar risada e sem debochar da própria ridiculariedade. Que graça há, então? Nem a própria visão sem dentes a rir no espelho. E tenho rápidas e cortantes vontades de jogá-lo fora e não me identifico mais com nossos becos, nem divido vazios e a consciência preguiçosa de nossas gaiolas. Divido nada e ainda tenho a barriga vazia.

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