Ela? Tem o espírito de um samba, tão puro e tão esperto, tão sutilmente armado para viciar-te à primeira nota. Tem a calma das vozes dos cantores de bossa e o veneno de olhos de criança, culpados de te enfeitiçarem apesar da malandragem, por vezes pela malandragem. Deus, astuto, fez seus cabelos cacheados para fazer encontrar-se nela todas as formas de ludibriar os corações fracos de seus pobres mortais. Fez seus olhos vivos para matar-nos. Fez sua boca de tal tamanho e formato que tocamos as nossas para imaginarmo-nos tocando a sua. E a indústria fez perfumes para sabermos que seu aroma é natural. Ela traz labirintos nas saias rodadas e roda-nos sem precisar nos tocar. Ela nunca usa saltos, somente sandálias. Ela dorme sobre meus cabelos e se queixa do meu queixo, dizendo que queria uma menina. Ela mexe nas minhas roupas enquanto finge ajeitá-las, e descobre onde estive noite passada sem eu ter saído de casa. Ela me chama de Caim enquanto grita outras coisas inomináveis, mas sonha com Abel enquanto dorme nos meus braços. Ela me surpreende em dias dos namorados sem eu sequer saber que se considera a minha. Ela pinta o cabelo para que eu não a reconheça entre outras volúpias, ela pensa em fugir. Ela me prende para que eu não vá, e passa minhas camisas pela manhã. Reclama de seu cabelo liso como se o quisesse cacheado, diz que nele nada prende, sem saber que prende a mim. Ela tem o espírito como de um pagode, maliciosa e agitada, dançando para todos da roda, mas cantando que me ama. Ela não passa maquiagem no rosto por saber da beleza natural, e nos enfeitiça por nunca estar menos bonita. Ela usa tênis ou sapatos baixos, sempre. Ela dorme de lado, mas odeia conchinha, e me empurra até fazer da cama quase que somente sua. Ela não grita meu nome, nem coisas inomináveis nunca, mas abre os olhos como se me engolisse, e me engole. Ela não me pergunta onde vou e a que horas chego, nem se cheiro a outras saias. Ela não usa saias. Ela me ama antes como amante que como pessoa. Ela tem os cabelos a morrer no ombros, e eu a morrer em suas pernas expostas, nunca cobertas, ela recusa calças. Nunca tingiu o cabelo, nem mudou de shampoo, nunca saiu de casa, nem gosta de festas. Canta seus hinos no banho e me prende por me deixar livre. Ela tem a alma de um fado, grudada às cartas de amantes passados sem os amar, talvez por não os amar mais. Chora sozinha no quarto e recusa-se a falar comigo mesmo que eu lhe dê flores, ela odeia flores especialmente por adorá-las. Depois ri de si e me convida para o cobertor, e até vê meus filmes preferidos. Ela usa óculos de grau e escreve com a esquerda, mas toca violão como se fosse destra. Ela canta as músicas de criança e dos tempos moços de seus pais e risca meus cds de rock quando não estou olhando e põe a culpa no meu desleixo de deixá-los espalhados. Ela decide minhas roupas e meus destinos, e não me deixa falar a ponto de me convencer que nunca fui contra suas idéias. Ela me olha de lado mais para me conquistar que para repreender. Ela me prende por me esquecer. Ela me cheira o cangote e depois vai dormir, como se eu fosse apenas um mau hábito. Ela parece uma canção de ninar. Tem os dedos finos e o rosto puro, mas me mata se estamos sós. Ela se cansa de arranhar-me como se ninguém mais me fosse ver, e ignora que não uso sempre golas altas. Ela me rabisca afrescos, para que eu jamais me livre de si. Ela espera que eu termine todas as frases até o último ponto e sempre reforça o quanto me estima, para que eu saiba que sou uma opção sua. Ela me ama antes como pessoa que como amante. Ela não bebe e não gosta do gosto em minha boca, e me beija como se não o sentisse. Ela usa saltos para se impor, mas faz estragos de chinelo. Ela usa perfumes variados, como que para ser diferente todos os dias. Ela usa preto no Natal, no Ano Novo, na Páscoa e em qualquer outro dia do ano. Ela é como um rock. Ela bate-me por dentro, por fora, estoura-me os tímpanos com revoltas e a alma com pessoalidades, e me extasia só de me olhar. Ela não me ama. Ela dança de olhos fechados como se se perdesse por se encontrar. Ela dança de olhos apertados quando ouve o refrão e sorri quando acha que não lhe estão vendo. Ela se risca, se rabisca, e por vezes sai sangue. Por vezes escreve em sangue no banheiro, nas paredes, em mim. Faz-me sangrar por não querer fazer-se. Ela pinta as unhas, mas nunca de preto, diz trazer maus espíritos. Ela lê a Bíblia antes de dormir e me puxa na cama se estou longe demais. Ela me faz café e erra sempre a quantidade de açúcar. Ela me escreve poemas e ignora que prefiro prosa. Ela me ama mais que a si. Ela não joga xadrez, mas o usa como enfeite na minha estante de canecas. Ela tem a alma de música clássica, e a maior parte dos poucos que a entendem a venera. Ela fala pouco, mas faz-se entender com gemidos. Ela lê para que eu durma e para que acorde. Ela nunca me traz café na cama, e finge-se surpreendia quando recebe. Ela usa lentes para ler e para mudar a cor dos olhos. Ela não vai ao cinema só, mas às vezes às festas vai, e por voltar cheirando a tudo, não cheiro nada. Ela deita, dorme e sonha comigo mesmo depois de gritar meu nome, e às vezes dá a entender que vai ficar, outras que vai partir, e deixa para decidir no dia seguinte.
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