13 de março de 2008

Ele, o tempo e a poça

Jamais havia se sentido tão traído pelo tempo. Havia já perdido amigos, amores, saúde, saudades, a juventude, mas essa sensação de agora, essa sensação desconhecia. Transformado em segunda opção pela ausência de vivência, de experiência, de contato, de descobertas, sentia o tempo passar com demasiada rapidez e cortar-lhee a pele, secar-lhe os olhos para depois os fazer lacrimejar. Como sempre em algum ponto do dia, do mês, da semana, da vida, vinha-lhe o casaço para lhe dizer para ninar as chuteiras no prego ao lado da porta. Nunca havia sucumbido a essa nem a muitas das outras tentações que lhe massageavam os pés. Já agora, achava convidativo. Muito.
Tinha particular asco pelas idas e vindas, principalmente as suas próprias e especialmente quando permacia no mesmo lugar. Seria tão mais fácil, é lógico, tão mais fácil, se fosse racional e menos intempestivo. Mas é que, veja, ser segunda opção sob o pano, disfarçadamente, bater figurinhas e depois devolvê-las no fim do recreio enquanto ninguém vê para que amanhã ainda haja o que se fazer durante o ócio que, pretencioso, chama-se a si mesmo de criativo, ser um suplente assim é viável, é suportável, é até comum e por isso completamente aceitável para a maioria das pessoas - e nesse grupo assinava seu nome. No entanto, ele sabia, ser o segundo melhor não é ser o primeiro, tampouco é ser o último. O último tem a certeza, e por vezes o carinho, de ser o último, e isso lhe conforta. Os do meio costumam morrer. Os do meio devem apenas sorrir. Os do meio devem ser bons, prestativos, eficientes, conscientes. E a consciência é quem mata os suicidas.
Mas para ele, acostumado a uma presença de corpo inteiro, acostumado a ter nos olhos os olhos das outras pessoas, ansiosas por algo seu, para ele agora bastava um. É que sentia em si a necessidade de algo que transcendesse seus olhos e encontrasse algo entre eles e sua nuca, e não achasse que fosse puro entretenimento. Havia nele a necessidade antiga de se fazer pleno em outra alma, que seria como de anjo, despida de sexo, e essa alma, que ele encontrara no banco de concreto sujo da calçada que por acaso era sua preferida, essa alma era vaga, ele descobriu, e para haver o que ele detestava chamar de 'encontro de almas', que na realidade bastaria chamar de 'encontro de necessidades', encontrar reciprocidade plena, sim, quase e provavelmente plena, mesmo que essa palavra o assustasse mais do que deveria, para haver tal encontro seria necessária tamanha reciprocidade que lhe trazia medo apenas imaginá-la. É que havia em sua história outros tombos que lhe haviam dado a sabedoria, que muitos chamariam privação, de não mergulhar de cabeça na primeira poça d'água que encontrasse, e aquela alma que encontrara no calçadão, aquela alma era feita de água, e nela vivia.
E então, como dissemos, aquela alma era vaga e se mostrou solícita e interessada, e mostrou uma reciprocidade de interesses que o assustou, mas que não o fez correr, como talvez esperasse de si mesmo - e por vezes são necessários desapontamentos, para que a vida siga adiante. Considerou, então, mergulhar naquela poça, porque não lhe parecia em hipótese alguma rasa, não, parecia-lhe sim um grande lago e, quando aproximou-se dela para descobrir um pouco mais de suas peculiaridades, viu-se refletido em suas águas espelhadas, nem turvas, nem tampouco límpidas, e foi também isso então que o fez pular: ele bem precisava encontrar a si mesmo.
Passou, então, a nadar quase todos os dias, mas sempre crawl, que fazia tempos que não era dado a essas ousadias infantis e achava melhor precaver-se contra sua falta de habilidade. No entanto, aquelas águas nas quais embrenhava-se e, acreditem, encontrava segurança por mais que descobrisse progressivamente o quão fundas eram, aquelas águas não eram suas, e por vezes haviam de disponibilizarem-se para outros mergulhadores, talvez mais experientes que ele, mas esse empréstimo não lhe incomodava o espírito, pois que os interesses daquela alma encontravam-se com os seus, e, por mais que outras tantas características suas fossem encontrar abrigo nos braços de outros nadadores, haveria ela de considerar-se mais segura e à vontade com ele.
Dias e noites se seguiram e ele permaneceu feliz e realizado com sua poça semi-particular, já tendo, por sinal, alcançado maiores profundidades e, portanto, encontrado incontáveis tesouros. Era verdade que assumira outros compromissos e responsabilidades desde que a conhecera, mas ele sabia ser isso um reflexo do bem, da segurança e da auto-afirmação que lhe provera tão carinhosa alma, e portanto acreditava na estabilidade de seus interesses e afeições mútuos. Teve notícias de nadadores que a freqüentavam mais assiduamente com o passar do tempo, ousando outros estilos e profundidades, preenchendo as lacunas que seu tempo atribulado o impedia de ocupar. Não foi difícil, então, para ele, resolver diminuir seus outros compromissos e dedicar-se mais àquelas águas, e depois de nadar peito e borboleta e de descobrir um pouco mais de suas profundezas, pensou arriscar nadar costas, mas achou-se por demais pretencioso, pois que aquilo presumia que conhecia tão bem as águas por onde deslizava que já nem precisava ver por onde ia, e desistiu da tentativa. Ainda assim, as duas almas seguiram contentes, e ele cria naquele mar de reciprocidade tanto quanto cria que ela cria, mas jamais saberia se sim, mas não pensava jamais nisso, intentando deixá-la livre para o caso dela decidir mudar de interesses, no entanto não conferia a isso muita importância: convencia-se, mesmo que precipitadamente, de que permaneciam as duas almas atadas uma à outra como a nenhuma outra.
Mas a vida continuava a exigir dele e a requerer sua presença noutros lugares e a comer-lhe a disponibilidade de estar com aquela alma, aquela tão formosa alma, pois que no momento outras almas também precisavam da sua atenção, e ele havia de ocupar suas horas com coisas outras. Não era que não quisesse estar com ela, longe de si não querer estar com ela!, era simplesmente que não podia.
E eis que um dia, um nebuloso dia como há muito não havia, descobriu ele haver um outro mergulhador, um outro mergulhador em especial, que havia descoberto profundezas daquelas águas que ele próprio desconhecia, profundezas que desconhecia tão por completo, que desconhecia que desconhecia. Ele descobriu, espantado, que aquele mergulhador e a alma do calçadão, aquela alma que tanto lhe correspondera e aninhara, servindo da mais bela das casas, do mais seguro dos abrigos e do mais doce dos doces, aquele mergulhador e aquela alma amavam-se e encontravam-se tão cruamente, tão naturalmente, tão reciprocamente, que a ele não havia opção outra além de sentar-se e deslumbrar-se.
Aquele mergulhador, aquele interessante mergulhador, era por demasiado belo, especialmente por reconhecer sua própria feiura, e ele, sim, ele, nossa personagem principal, não soube o que fazer, pois que sentia que também poderia apaixonar-se por aquele mergulhador, mesmo que, a priori, não houvesse o mergulhador aparentado ser o tipo de poça na qual ele costumava mergulhar, mas o tipo de poça que era tão turva, tão lindamente turva, que era toda espelho, e ele, nossa personagem principal, jamais havia se deparado com algo que revelasse com tanta clareza, com tão feia e indecorosa clareza, sua própria imagem. Seu reflexo, desenhado naquelas águas, era tão nítido que mesmo a maior das ondas e turbulências eram incapazes de fazê-lo estremecer, e ele entendeu, então, porque era que aquela alma do calçadão o havia trocado.
Mas aquilo era absolutamente injusto, ele sabia. A alma do calçadão jamais o trocaria. E então ele entendeu, mais uma vez. Não era, ora, lógico que não era, que havia ele sido trocado, mas tanto quanto possibilitara -porque achava ser certo possibilitar-, a alma do calçadão havia encontrado no mergulhador uma forma diferente de aconchego e carinho, uma forma diferente de abrigo, a forma de aconchego, carinho e abrigo que precisava. No entanto ele sabia, sim, ele sabia!, que aquela forma de aconchego e abrigo também ele podia oferecer, se ao menos ele soubesse que era aquilo que ela queria, se ao menos ele tivesse tido tempo para dedicar-se e conhecê-la, se ao menos houvesse tempo, mas não havia. Não havia meios de estar mais presente, nem meios de deixar os compromissos dos quais tomara parte, não havia maneira de driblar tudo aquilo que ele precisava fazer no momento, não havia como contornar aquelas montanhas todas que o deixavam do outro lado da cidade, pois que ele infelizmente também não tinha carro.
E ele ficou em segundo lugar. Era a segunda figurinha predileta, a segunda música mais tocante, o segundo autor preferido, a segunda poça favorita. E a alma do calçadão lhe escrevia sempre que podia, mandando notícias e beijos, e ele ia lá nadar sempre que possível, mesmo que o sempre parecesse cada vez mais escasso, mas eles batalhavam os dois para que houvesse tempo, mesmo que não houvesse espaço. E era tempo que não havia mais que tudo, todo o resto permanecia lá.

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