23 de outubro de 2008

Tchau, Rosa

Rosa, quando foi que esquecemos de nos conhecer? Me lembro que dia vinte e quatro marcamos a data do casamento e eu, temeroso, sorria como se soubesse o que me viria, e o que viria a você. Não te amava naquela época, te queria. Hoje, com esses anos todos, te quero por saudade das tuas pernas de menina. Diria que não sei mais quem és, mas jamais o soube. Amei-te durante os anos da média aritmética de nosso tempo junto, no período intermediário entre conviver contigo e não te entender e entender-te e não te perdoar. Quis-te todos os dias. Mesmo de costas a lavar nossos chinelos sujos de mangue e eu a lavar pratos e um tanto do desgosto. Éramos parceiros e fomos felizes, mesmo você com outros corpos e eu também. Jamais amamos outros olhos, penso, que não nossos próprios, que por horas também odiávamos. Odeiei-te por ter-me feito odiar-me por anos, e, por mais que te tivesse perdoado - pois que a culpa não era sua, e a mim só era possível perdoar-te quando a atribuía erroneamente a si -, jamais limpei minha memória para lhe conferir o lugar doce que por muitas vezes mereceste. Fui duro, compensando a moleza de menino e a besteira de ter consentido em nos amarrar tão cedo. Eu tinha uns trocados, você tinha uns trocados, pareceu-me inteligente juntá-los, vai desculpar. Pelo menos não tivemos filhos e então pelo menos nesse ponto fomos sensatos. Jamais fomos felizes, com eles então teríamos sido miseráveis. Nenhuma desgraça compara-se à infelicidade de ter um filho. Confundir noções de posse, liberdade e amor é capaz de matar um ser humano, e por mais que você me ache pouco isso, de fato o sou. Você lhes comeria os cabelos e os olhos e os membros pensando protegê-los, e eu os cuspiria para dar a dureza que a mãe poupara. Seríamos mais fracasso que hoje, você aí sabe onde, eu aqui nesse barco.
Depois de velho dei para querer ser santo e descobri que era essa a forma mais fácil de andar sobre as águas. Comprei uma madeira velha com motor com o dinheiro que escondi de você e saí por aí, brincando de marinheiro. Quando jovem quis sê-lo e não pude por pobreza. Quis ser feliz também, e não pude quase que pela mesma razão - é mentira que o dinheiro não é nada, e o nojo por ele é um luxo.
Enfim, você ainda pobre e do mesmo jeito velha, sem amores e com aquelas amigas que, como Dom Sebastião, você ainda acha que não morreram. Vou te contar que Maria durou só uns poucos anos depois de nossa união - minha e sua, digo, Maria nunca tive depois dos vinte e dois- e as cartas que mandaste não chegaram, é lógico. Vá averiguar. Tereza também, que me amou mais do que poderia e seria sensato, foi embora antes de tua última carta, aquela que contava de nossa dureza - sim, li. Outras foram há pouco tempo, e penso que essas leram a última impressão de tua caligrafia. De meus amigos, muitos já estão no inferno, inclusive João, que matei quase sem querer ao saber de seu romance consigo. Pedro infartou, José suicidou-se por Ana, Ana por culpa e eu agora estou próximo de ir pelo cigarro. Quase virei boêmio agora nesse fim de vida, não fosse pelo fígado já um tanto falecido, o pouco dom para as artes e a feiúra da pele murcha, que me impossibilitou muitas das mulheres que quis.
Agora, só navegando, estudo como irei morrer. Não se escandalize, vá, você sabia que eu era dado a essas tristezas que pensa injustificáveis e esse niilismo de gente pobre e magra. Não tenho mais teu corpo que quis por tantos anos, teus cabelos doces, teu olhar duro, tua pele dura, tua mente mole. Não tenho mais os orgasmos de nossa juventude odiosa, a amar-nos na desgraça e no ódio para disfarçar a infelicidade do que escolhemos para nós. Não tenho mais as brigas de tua insensatez e a casa na praia quase sempre levada pelo vento. Não tenho mais nada e já não me agüento, não me suporto, não me amo. Nunca me amei, mas só agora tenho a inteligência de desistir, dantes acha-me belo demais para acabar com o ar da própria graça. Enfim, chega. Nada quero mais. Espero que essa carta lhe chegue antes da morte ou do vento vencer a resistência dessas madeiras que juntei para nós.
Boa noite, querida, vê se vive um pouco antes do nada, entende logo que amanhã não precisa ter café na mesa.

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