Eu sentava no quinto degrau da escada. Era de azulejo branco e o corrimão negro ao lado não falava comigo. Não que eu tivesse algo na cabeça que precisasse ser externalizado ou que me sentisse só e quisesse companhia e amor; mas ele não falava comigo. A cinquenta metros, a mesa de onde eu saíra minutos atrás ainda ardia em conversas interessantes, mas eu me preferia sentada encarando o escuro do fim de dia, a mente dividida entre pensar o que poderia e não pensar em nada.
O fusca vem, faz a curva e sem mistério estaciona na quina das duas fileiras de carros, o espaço onde em teoria não se estacionaria, ou onde fica o entulho ou o latão de lixo. É azul metálico e velho, como um céu noturno desgastado e por cima polido, e tem rodas velhas e pneus empoeirados de uso. Os faróis morrem, a luz interna não é acesa, o carro pára de respirar e espera. Ainda encarando o carro, como artifício de quem não encontra nada mais para voltar os olhos, ou não quer, ou não precisa, encontro dentro um vulto que mexe em algo sobre a coxa. Mexe as mãos repetidas vezes, é calmo e carinhoso, faz movimentos como se limpasse ou polisse qualquer objeto de estima. Então pára, não se encara no retrovisor, abre a porta sem pressa com a mão esquerda e se ergue com uma leveza pesada. Fecha a porta e caminha quinze passos até se encontrar à minha frente, a pouco menos de um metro, e me projeta a bala na testa. Abro os olhos mais do que poderia, não tanto pela dor ou pela morte, mais pelo choque e o dramatismo de uma cena que certamente termina minha vida como se fosse um filme. Minha consciência ainda vive e, por mais que todo o resto de mim esteja morto, como seria impossível que não estivesse, vejo tudo de mais de um ângulo, como câmeras de cinema, e posso tocar os atores sem que saibam de mim; contanto, não sou espírito. A corrida reverbera no fundo de minha cabeça furada, os passos altos ecoando nas paredes da parte de trás da comercial onde o assassinato aconteceu; ela vem. Me vê o corpo jogado na escada suja, uma long neck que não era minha ao lado, tocos de cigarros vários, o resto vazio. Era como se eu chorasse o vinho de outras noites. A testa encharcavasse de mim, o sangue me descia a lateral do rosto, os olhos eram claros e vivos ainda que mortos. Jogou-se na escada fria com força e desespero, tomou-me no colo como se resolvesse brigar comigo por ter-me deixado à mercê, como se eu fosse qualquer pessoa importante que as outras têm intenção de matar; mas eu nada era e, agora assim, realmente nada sou a não ser algo estranho e mole de vestes numa noite leve e fresca da capital do país. Apertou-me e me sacodiu com voracidade, gritou-me nos olhos, ouvidos e cabelos, pôs sua testa na minha, balançou-me de início para me acordar e o terminou fazendo para ninar a mim e a si mesma. Pendia para frente e para trás como um pendão de relógio, e era: o tempo contava seus minutos, meus minutos, contava minha vida que fora e a que não seria e que portanto já não era. Outras pessoas passaram por ali. Os que estavam na mesa com ela não vieram, coisa estranha, de repente não estavam mais, quase que não viviam, entende?, como se jamais tivessem estado ali; tudo era negro e confuso. Minhas pupilas não contraíam mais, nem minha mão na sua, nem meu músculo da coxa involuntariamente. Alguns corpos desconhecidos caminharam ao lado da cena. Olharam estranho e com um medo curioso ao qual não cederam, nem deram importância. Ela já não entendia o que era aquela distância e isolamento ao redor de nós duas, aquelas pessoas que pareciam nos ver como atrás de vidros, de grades, da tela da televisão como um programa com potencial de ser bom mas o qual não se está com paciência ou tempo para ver. Apertou-me contra o peito, o tórax e o peito propriamente dito, mas não acordei nem me senti mais aninhada, nem revivi. Eu caminhava por trás da cena, vendo meu corpo branco e o seu moreno, lembrando acontecimentos antigos e lendo seus movimentos e ações de agora, tocando o choro grudado em seu rosto, acarinhando seus cabelos, seu pescoço, aninhando-a aninhando-me. O tempo era frio e a noite pesada, mas eu leve anoitecia em seu colo solitário, sua dor entrando pelos meus poros mortos. Eu sentava à sua frente vendo seu rosto, seus olhos, sua aflição. Nada mudaria. Eu não viveria mais, sua vida não mais me teria, não nos veríamos em finais de semana, na faculdade, em restaurantes, em fins de dia e começos de tarde. À minha frente esfarelava-se sua pele, morrendo também, e um pouco do seu intuito e vontade de viver. O cansaço lhe dominava as células. Levantou-se, deixou com estrondo meu corpo cair de volta nos degraus frios, a cabeça batendo na quina de um deles, amassando um pouco da têmpora já póstuma, virou-se e caminhou sem pressa saindo dali, nada em sua cabeça, nada na minha. Nenhuma intenção mais pelo meio, nem nenhum pudor de falas fora de hora, nem nenhuma vontade de encaixe, nem nenhum conto especial, nenhum olhar que se entendesse, nenhum choro que acalentasse, nenhum ganho de personalidade, nenhuma mudança, nenhum avanço, nenhuma eternidade. Teria o resto dos dias como um calvário que depois de tempos se tornaria mais enfraquecido e fácil e cansado e internalizado de tal forma que fosse um tanto inconsciente e que não a matasse mais com tanta força, mas ainda assim aos poucos morreria também por causa dele, e aos muitos sentiria dor exatamente pelo desgastar desse penar. Nada mais avançaria em seu relacionamento comigo, nem eu sofreria por separações inevitáveis e inexistentes. Eu não mais erraria em associar coisas que não nasceram juntas, em pedir coisas que não me trariam nada, em exagerar a pesagem de coisas leves. Não me entregaria ao choro em seus braços, não entenderia errado intenções, não sofreria antecipadamente. Na dobra da esquina seu corpo sumiu para sempre e não sei onde ela morreu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário