24 de setembro de 2008

Quem tem colírio também usa óculos escuros

Dançava com liberdade. Com as pernas, os braços, quadris, cabelos e olhos - os seus e os meus, sem saber. Batia os pés mais vezes que a música, e olhava o dj por vezes com um deslumbramento de felicidade e prazer. Balançava o tronco quase que sem prestar atenção ao ritmo, chacoalhando-se na liberdade do movimento e no conduzir que queria, independente da freqüência dos sons. Fechava os olhos e os abria com freqüência menor que piscadas, e por vezes esbarrava nos meus que lhe olhavam a nuca quando de costas. Cheirei seu cabelo no escuro e na confusão, sem ser flagrado por nenhuma das almas que não me poderiam ver, os amigos vários que nos rondavam os corpos e velavam pela integridade de nossas intenções e nossos relacionamentos que extrapolavam as paredes da sala, nossos amores que não estavam ali conosco. Cheirei-lhe o cabelo, no entanto, sem medo, inconseqüente, arriscado, traidor, lindo. Estive próximo a agarrar-lhe o corpo e descobrir-lhe a boca, e por vezes vi a situação acontecendo à minha frente, meus dedos em seus quadris, nossos pescoços como cobras e nosso enlace, suas mãos comendo-me as costas, morrendo em mim, querendo-me. Vi a possibilidade disso e com sobriedade, apesar do álcool, pus-me a acreditar esperar passar os dias para a chegada dessa realidade. Não questionei se demorariam meses - semanas certamente sim -, seis talvez, meio ano contando carneiros. Não me pareceu que fosse desvanecer em mim o desejo das pontas quentes dos meus dedos, tão astutamente envoltos em outras nucas e coxas pelo querer e pelo também não poder ter as suas. Estive paciente e louco, observei seus trejeitos mesmo que não fossem meus (ainda[?]), suas pernas, seus sapatos, seu gosto por roupas, seu sorriso, suas circunstâncias. Fui solitário e feliz em meio a monstros e vitrines. Peguei em seus ombros com os olhos, toquei-lhe o rosto e o pescoço com carinho e violência, colei-a em mim, senti sua vontade voraz, quase fui assassinado tanto quanto quase matei, havia sangue e calor pela pista, todos nos podiam ver mas não viam, éramos só mais uma fração do mundo, alguns solitários nos olhavam por fraqueza, vontade ou inveja, acontece, já me aconteceu, já aconteceu a outros.
Mas nossa dança continuava, era circular por momentos, como uma constante e interminável emboscada, cobrindo espaços e rotas de fuga, eu e ela, e finalmente era via de mão dupla. Não mais essa tortura só, essa busca pela vontade dos outros, essa situação incômoda de loucura talvez desnecessária, fingida e insana, já insana pela mera loucura, pior ainda se despropositada. Não, era simples e fácil e entorpecedor e sexo e não amor, ainda não amor, para dar tempo de tudo, da felicidade livre e desempedida, do compromisso do querer, essa amarra amável, e então eu não mais seria portas abertas, seria porta de casa, conheceria seu quarto e seu armário, descobriria seus amigos e seria querido, seria a primeira pessoa a se ligar quando do acontecimento de algo, seria seu travesseiro e despertador, suas brigas e birras, deixaria que me conhecesse e conhecesse meu corpo, meu jeito, meus medos.
Mas agora, depois de carros, copos, colares, colagens e colírios e a visão de uma - sua - felicidade sem mim, nada mais quero além de óculos escuros.

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