4 de julho de 2008

Vermelha e louca

Não era que não esperasse qualquer dessas coisas disformes que agora lhe diziam, nem era que se sentisse incomodada ao fato de serem incômodas; é característica do incômodo uma coceira atrás da orelha, mas nem isso sentia, nem isso, sentia sim uma letargia tão curiosa que não conseguia dedicar toda a atenção ao desmoronamento de seu próprio mundo, mas, ao contrário, apreciava a beleza com que não era levada a lugar algum. Ouviu o reque-reque daquela voz engraçada, como de um rádio mal sintonizado, e quase riu, não fosse a visão dos olhos negros à sua frente, que não sorriam, nem choravam, mas queriam, secretamente, que ela escolhesse um dos dois para fazê-lo, e melhor que fosse o choro. Caminhou as unhas pela lateral do próprio rosto e apertou os lábios como para dizer que não gostava do que ouvia, mas na realidade não ouvia, nem sentia o comichão atrás da orelha, na verdade achava curiosa a escolha das roupas do outro, que não pareciam seguir a linha da sua moda. Olhou para o celular para ver a que horas chegaria o fim, mas o fim não chegou, o fim não chegava, o fim se estendia e beijava seus pés e esperava ser pisado e deixado para trás, como fazem os amantes muito devotos, como ele queria que ela fizesse, e ela não prestava atenção, nem sentia o comichão atrás da orelha. Ao contrário, ela recriava a noite passada com extrema precisão, relembrando as cores e as dores, inclusive a dor da culpa de ser feliz. Ele, por sua vez, deveria estar dormindo com a secretária durante as horas extras que fazia, e ela masturbava-se no bar com os olhares das outras pessoas. Homens e mulheres lhe cruzavam a frente e a fronte, alguns ainda à vontade o suficiente para lançarem-lhe olhares com números de telefone, mas ela nunca ligava. Gostava do passar das pessoas e da crença na disponibilidade delas, mesmo que tivessem parceiros. Gostava de criar fantasias, às vezes mesmo no bar, mas vivia raríssimas, às vezes mesmo no bar, mas o objetivo não era vivê-las. Sentava-se de pernas cruzadas e sentia prazer em mostrar grande parte das coxas, mesmo que ninguém olhasse, mas todos olhavam. Aprendera a fumar pela sensualidade do ato e então fumava, acendia seu cigarro no banco alto do bar e bafejava nuvens de sexo ao redor de si. Não tinha unhas vermelhas, mas, àquela altura, mesmo que tivesse, todos os outros não a quereriam comer mais do que agora. Depois levantava, caminhava sobre o salto para a saída e ia, e deixava cair os cartões que lhe tinham sido entregues logo na soleira da porta. Mas ele continuava a explicar-lhe rios, esperando que ela chorasse rios, mas ela não chorava, e agora então era ele quem parecia à beira do desespero. Calculara tudo, meticulosamente, para lhe dizer no dia de hoje, nessa hora, sentados nessa mesa do bar, rodeados por esse tipo de gente, bebendo essas bebidas e olhando exatamente para essa paisagem, e tudo seria muito sutil e leve, ele seria delicado e explicaria com tranquilidade, e seria tenro, e seria belo, e tentaria suavizar o choque, mas ainda assim ela choraria, ela choraria, ela gritaria e lhe daria com a bolsa do corpo, o rosto vermelho, lívido, as mãos rijas, o corpo rijo, a cabeça rija, o amor rijo, vermelho, lívido. Mas ela não chorava. Acarinhava a boca do copo com o dedo do meio sem perceber e tinha o rosto levemente virado, sem encará-lo, oferecendo a orelha direita. Tinha o corpo descansado na cadeira e os braços leves, o cabelo descontraído e os seios subindo e descendo num ritmo calmo. O pescoço ainda cheirava ao perfume - que ele dera - e o batom ainda estava nos lábios. Ele lhe dizia agora com mais efusividade que aquilo era o fim, nada mais, mais nada, havia outra, havia outras, sempre houve, pelo prazer, pelo sexo, pelo mudar da rotina, pela aventura, pela podridão de seu caráter, pela podridão do caráter dela, pela podridão dos caráteres das outras, pela dor, pelo amor, por você, por mim, por nós, pela loucura, CHORE! Mas ela não chorava. Ele tinha os cabelos um pouco fora de ordem, a gravata levemente virada, os olhos arregalados. Samanta, Sofia, Alice, Laura, Márcia, Cláudia!, Sofia!, Samanta!, Laura!, Alice!, Márcia!, Sofia!, CHORE! Na sala, no escritório, no sofá, na cozinha, na despensa!, nos hotéis!, nos motéis!, nos bordéis!, CHORE! Segurou com força o copo e com dedos vermelhos virou-o rápido e o repôs com um baque na mesa de madeira. Enquanto você cozinhava, enquanto você sonhava, enquanto comprava, enquanto falava!, enquanto dormia!, enquanto sorria!, enquanto você corria!, enquanto morria!, enquanto você sumia! Por que você sumia? Por que você sumia? Eu te amava tanto, eu te amo tanto, volte. Não, espera, não vá. Não vá, não vá. O que foi que eu fiz? Eu conserto, eu me esperto, eu te quero, eu te espero, eu modero, não vá. Peça mais um copo, eu pago, do que você gosta? Não vá, espere, olhe, tenho o rosto vermelho, lívido, as mãos rijas, o corpo rijo, a cabeça rija, o amor rijo, louco, lívido, vermelho, estou chorando, não vá. Me questione, me grite o nome, me bata, me arrasta, me arrasa, me odeie, esperneie, não me deixe. Toma meu cartão, anota meu telefone, não some, usa meu sobrenome, me consome. Desespere, me rasgue a pele, me fira, transpira, espirra, agoniza, sofre, morre. Me odeia, me mata, me arrebata, me despreza, me tormenta, seu amor nada me acrescenta, só seu ódio me amamenta. Fique.
Ela ergueu o corpo com leveza, descruzou as pernas, apagou o cigarro e as nuvens de sexo e caminhou sobre o salto até a porta, hesitou na soleira e deixou cair o cartão.

Um comentário:

  1. gostei especialmente muito deste.
    das partes que se referenciam a amor rígido e vermelho, também dos apelos, especialmente bastante.

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