23 de julho de 2008

Um papel não é um canteiro

Não há propósito, nessa vida, em escrever coisas felizes. Não há propósito em colocar flores em papel, flores jamais são tão bonitas fora da terra. Não há propósito em amar na folha, há só propósito em amar a folha, o eterno incesto de amar a folha. É por isso que não escrevo coisas bonitas. Escrever bonito não é libertação. Escrever bonito não me faz chorar, nem me faz renascer, nem me faz amar. Escrever bonito me enoja. É quando então vomito que resolvo ir ao papel. É quando me acho de uma feiúra tão intensa que me levam para de frente do papel, e me amarram a mão em qualquer coisa que risque e me deixam para morrer no branco. E então canto, e choro e choro mais que canto, pois que só canto no fim do choro, e o fim é sempre breve. O fim não sacia. O fim não sacia nem as tristezas, nem as felicidades, o fim é uma invenção para que exista um começo, mas não há começo senão o trauma inicial e esquecido de nascer. E é bom que eu tenha esquecido o trauma de nascer - ainda que não o quisesse - pois que assim tenho toda a memória para gravar na retina o trauma de viver. E que trauma, que trauma! e é pena que não posso morrer nesse eterno êxtase de viver, é pena que não posso, e não posso pelos outros. Por vezes, muita vezes, quase todas, gostaria que não me quisessem como sou, que não me quisessem assim, para que pudesse renascer sempre que conveniente, para que pudesse de repente querer morrer e desistir quando desse-me preguiça de fazer o nó da forca. Queria que não me estimassem, nem me quisessem por perto, nem me tivessem apreço para que eu pudesse ser como os perdidos no mundo, os únicos achados. Gostaria de morrer no êxtase eterno de se viver livre. Mas também, aos poucos, não acho que eu queira ser livre assim. Assim, de tal forma que não me queiram, nem me apreciem, nem me queiram por perto, nem me queiram matar. Quero mesmo é fazer o que quero, e poder ser paradoxal, mas se fazer o que quero é condicionado pelo que sou e pelo que fizeram de mim, não sou então livre. Não sou livre, nunca fui, nem serei. Dirão por mim, depois que os vermes fizerem festa em minha carne, o que fui. Definirão-me de acordo com seus bel prazeres, com seus fetiches e suas memórias dúbias. Recriarão-me da terra, mas não me farão podre. Estarei já osso, mas farão-me recheada e altiva, bonita como seus quadros preferidos, e aposto que são Monets, e gosto de Munch. Farão-me tão bela que, debaixo da terra, terei nojo e não quererei jamais deixar o subsolo. Estarei ali esperando que venha algum pobre amigo solitário e se sente sobre meu travesseiro de pedra e ria, ria muito, ria gostoso, toque algum rock no violão e brinde com uísque. E depois deixe que venha uma passeata chorar sobre minha casa e crer na minha santidade. Enunciarão versos tão puros que tentarei fechar os ouvidos, e discutirão inscrever "Foi poeta, sonhou e amou na vida" em meu quadro negro. Não me conheceram, não me conhecerão, e me chamarão de amor e companheira e querida e eterna, sem saber que quero dormir para não acordar e que não quero sequer lembrar quem são. E quererão, como já disse, escrever coisas bonitas. Então digo agora que escrever coisas bonitas não tem propósito. Não há porquê humilhar aos outros com nossa felicidade tão radiante que não nos foi possível mantê-la em nós: foi necessário soar trombetas e soltar serpentinas. É certo que por horas isso é bem necessário, mas só o digo por obrigação de expiar futuros pecados. Escrever floreios é mera humilhação em praça pública dos corações desgastados. Ninguém precisa ler beldades. Ninguém precisa de um dia feliz para os outros a não ser que o outro tenha nome e viva perto e seja querido, e ser querido, argh, consegue ser um inferno. Jamais escrevi para alguém querido. Escrevi já sobre queridos, mas jamais para eles. Escrevi, sim, para mim e por mim, pela necessidade de cuspir feiúras que por hora pareceram belas - as feiúras têm essa mania de se mostrarem belas para os outros. Escrevi porque parecia o peito um antro repleto por demais de mim, e então quis sujar também os outros, sabendo que hora ou outra seria tida como bonita.
Então quero logo deixar claro que se em tempo virem qualquer coisa colorida - que não seja de vermelho -, perdoem minha humanidade de querer humilhar as almas em dias tristes e torçam, se parecer melhor, que logo esteja humana em demasia, e possa então cuspir feiúras em paz.

2 comentários:

  1. já eu penso que a felicidade não deve ser omitida mesmo que haja preferência pelo cinza.

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  2. "Não há propósito em amar na folha, há só propósito em amar a folha, o eterno incesto de amar a folha."

    "Estarei ali esperando que venha algum pobre amigo solitário e se sente sobre meu travesseiro de pedra e ria, ria muito, ria gostoso, toque algum rock no violão e brinde com uísque."

    fantásticas essas... muito mesmo.



    gostei absurdamente disso tudo.

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