5 de novembro de 2008

Amanhã

[Nada de pessoalidades. Lirismo, lirismo, lirismo, que em mim é o que há de mais imperdoável - odeio ser muito perdoável, mas não tanto. Lirismo, lirismo!]
Caminhou dura, quase não caminhava, mas caminhava como sempre, só que como pedra. Comia pedra, comera pedra, com certeza, mal movia-se e sofria de forma estranha e pesada, quase como se os músculos recusassem-se a andar, mas andava. Esbarrou num transeunte, dois, caminhou a faixa de pedestres sem olhar para os lados, não morreu, mais uma vez não morreu - era sempre esse o problema -, caminhou, mais, não via, não queria, não ouvia, não cheirava, não dormia, não comia. Bebia só o que tinha chance de matar. Encontrou João no caminho. Passando pelo cemitério encontrou João; sempre muito frígido; tinha hoje especialmente os lábios frios; tinha a pele cinza e a cama verde; ê, inveja, João. Caminhou. Passou pela igrejinha, pelo padre, por Jesus (hehe, Jesus), outra faixa de pedestre, calçada, descampado, descalça, descalçado, descolado, descorado, colorido, tarde, fim, amarelo, laranja, fogo, roxo, marinho, fim. Parada sabe-se onde, não se sabe, não se sabe como saber a si, como saber a si?, comer a si. Virou-se. Era escuro e era frio, mas não sentia, era que passavam casacos calças e nucas eriçadas, na calçada, calada, cansada, prostrada. Olhou-se. Estava viva. Declinou a cabeça e seguiu o caminho de volta a casa. Era sempre a mesma coisa.

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