24 de junho de 2009

Ceratocone mata

Eu tinha uma faca e nenhum fio. Ela com o salto agulha empunhado tinha mais, e ainda no que mexia era a unha quebrada da mão, ameaçando-me terrivelmente especialmente por não me ameaçar. Olhei a sola do salto: mínima, incisiva. Cutucava-me à distância de cinco metros, apertava-me o pescoço com a ferocidade delicada das sobriedades femininas. Girei o anel do anelar. Me incomodava. Era como se . Empunhei a faca mais uma vez, e mais uma vez, passando-a discreta pelos dedos, senti a ausência de corte que me atormentava. Ergueu o pescoço. Olhou para a televisão desligada com uma pausa, e deve ter sentido no ar qualquer coisa que não o cheiro da comida que deixei no forno. Mas era, quase queimava. Comi só, ela ainda mexendo em partes do corpo aritmeticamente perfeitas para que de fato encontrasse algo com que se ocupar nelas. Olhei para a faca. Soava verde e meio manguezada, meio enlameada e triste, como que inútil e rota, e era. Joguei-a no chão com o movimento do cotovelo, desgostoso de vê-la e precisá-la. Ela levantou. Seca e breve pegou-a do chão, empunhou-a com o sorriso de um churrasqueiro aposentado e sentou-se no braço do sofá para conversar comigo. Contou de algumas épocas que não conheci e de sofás floridos da sala de sua mãe. Disse do dia tediosamente cômico no trabalho - e pensei se não queria ser Allen; não Lilly, como eu prevera, mas Woody - e por fim que as batatas ficariam melhores se cortadas na diagonal. Enfiou a faca na junção do meu pescoço e pronto: adeus jantar, batatas, salto, fio, zip.

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