"Sentir é pensar sem ideias, e por isso sentir é compreender, visto que o universo não tem ideias." F. Pessoa
27 de junho de 2009
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Sentia como que um tilintar ruidoso de moedas inexistentes no bolso. Mais fundo que o precipício remoto de que ouvira falar no filme da semana passada, seu bolso era como que uma criatura à parte, quase vaga e imprecisa, como que furta-cor, incerta, impetuosa, voluntariosa, distante. Mas é que, apesar de todas as tentativas de trocar de calça, com pesar resolveu admitir que o bolso, na realidade, ficava na própria pele. Era uma entrada estranha e sorrateira, ainda que curiosamente visível e por assim dizer pesada, mas era que no fim das contas não tinha zíper, mas tinha o rasgo e a rispidez dos lugares que guardam coisas. Via as beiradas por vezes com nojo e repulsa, aquela boca rasgada de dentes desajustados - é que não havia fecho mas a estrutura do fechecler aparecia sanguinária e ameaçadora de tempos em tempos. De qualquer das formas, assustava-se vez ou outra com a disposição do bolso, e sempre, nesse momento, havia nas redondezas algum espelho, e olhava com completo estranhamento para a imagem enantiomorfa, e achava dela só isso, enantiomorfa, quase nunca reflexo, ignorando que uma é outra. Sentou-se num banco, cansada, e pôs a mão pela pele, ultrapassou o corte de entrada e invadiu o conteúdo macilento e mole do escuro do bolso. Sentiu chaves, achou estranho, sentiu cadeiras, cardápios, centelhas e videntes, e quando tocou o que pensou ser a lâmina de uma guilhotina, tirou a mão com rapidez para olhar o corte fino que fazia diagonal na ponta do dedo. Achou engraçado, meio tenebroso, e chupou A negativo de volta. Sentiu umedecer carne e veias quando repôs a mão cortada no bolso da pele, e com uma curiosidade científica e animalesca brincou com uma veia entre o indicador e o polegar. Era como se sentisse sangue com sangue, mas não sentia. Achou então pontas, alçapões, corações de mãe arpões sereias e serpentes, e alguns dentes de leite que achara já ter perdido. Tirou a mão, coçou a coceira repentina que lhe acometeu logo abaixo do rádio e recostou-se na cadeira. Achou estranho, o redor, si mesma, o bolso e a existência de todo um resto; sentiu o peso dos seios, sentiu apontar-lhe o joelho, perdeu um fio de cabelo que só sairia no banho, dali a duas horas, e pensou se não seria próprio então cochilar, mas não cochilou.
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