30 de janeiro de 2022

Nada se passa. Embora sejam duas da manhã e o sono lhe tenha escapado com frequência nos últimos dias, nada se passa. Não tem pesadelos, nem preocupações. Não lhe vêm más memórias, nem excesso de planos. Sente uma certa azia, mas lhe parece que o que a mantém acordada altas horas é a luz da janela dos vizinhos. Dorme e, ao acordar para qualquer mijada noturna, agarra-se numa luz. Existe uma força de atração em imaginar o que eles fazem, o que faria se fosse eles e o que faria com eles. Por vezes enquanto mija escuta certos barulhos que lhe parecem sussurros e muito frequentemente gemidos, mas ao segurar o xixi para escutar, emudecem. Às vezes ainda o acendedor do fogão ressoa em algum apartamento, e lá vai ela variar a pensar quem cozinharia a essa hora, por que e o que. Imagina a cena da cozinha. Resgata alguém do passado remoto e coloca na cozinha e finaliza aquela conversa de anos atrás em que faltou dizer. Ou o passeante noturno que leva o cachorro para passear às três da manhã – o pobre cachorro mal se aguenta em pé, a cada minuto quatro passos, para pra cheirar a planta e lá está há tanto tempo que acho que dormiu. Que imagina o passeante a olhar a lua, parado, como se esperasse o cachorro? O cheiro da dama-da-noite que exala de repente quando quase ninguém está ali pra sentir? Está ela, apoiada na janela, a sonhar na pele dos outros.

Nenhum comentário:

Postar um comentário